miércoles, 29 de febrero de 2012

2012 no Discovery Channel: a perda da ética do jornalismo científico

O Discovery Channel preparou um documentário especialmente dedicado às profecias de 2012 que foi ao ar no mês de fevereiro desse ano.  Com o sugestivo título de Apocalypse 2012 o programa entrevistou  a John Rennie, editor da revista Scientific American, e  Ian O'Neil, físico solar pela Universidade de Gales, produtor do site Discovery News e criador do site Astroengine. Junto com eles estavam Edwin Barhnhardt do Maya Exploration Center, e Holly Gilbert e C. Alex Young, ambos físicos solares do Goddard Space Flight Center de NASA. Com semelhante elenco tudo indicava que o programa não daria trégua às críticas céticas contra as profecias de 2012.

E no entanto, as últimas frases do documentário foram : Mas os especialistas podem estar errados e em 22 de dezembro de 2012 os vivos podem chegar a invejar os mortos.  Se o mundo acabar não haverá como negar uma simples verdade: nós fomos avisados. Enquanto a voz do locutor lia essa profecia apocalíptica, imagens  mostravam um mundo que se destruia por causa de terremotos gigantescos, tsunamis e demais pragas de fim de mundo numa dantesca dança completamente irreal produto da imaginação de roteiristas de Hollywood, talvez tiradas do filme 2012.   Não resulta um tanto estranho esta mensagem final num canal que diz que seu alvo é a família, a informação a educação e o entretenimento?
 
Faltou mencionar que no grupo de convidados estava Lawrence Joseph: jornalista e autor do livro Apocalypse 2012, uma visão supostamente científica de como o mundo poderia acabar esse ano, que já leva vendidas mais de 100.000 cópias segundo o seu próprio site.  Talvez é aqui onde começamos a compreender a moral do documentário (as letras itálicas indicam minha visão crítica de que realmente se tratou de um documentário) do Discovery Channel. Não é divulgação científica, mas um show mediático onde a ciência é um ator coadjuvante: ela não é o centro mas sem ela não teria espetáculo.  Talvez pior ainda, foi um golpe de marketing para relançar as vendas do livro de Lawrence.

Divulgação científica é ciência também.  Ela é até mais difícil de fazer porque deve tentar ser rigorosa na explicação, sem utilizar recursos lingüisticos ou matemáticos  sofísticados.  Isso coloca qualquer cientista numa posição difícil porque a maior parte do tempo ele passa dentro de um ambiente pleno de significados. Fora dele, deve substitui-lo com outras descrições mais generalizadas.  Não se trata de usar palavras simples ou alegorias frouxas, mas de buscar alternativas à explicação.  Não é fácil, e muito poucos conseguem. Em qualquer caso a divulgação científica tenta colocar no público leigo as ideias da ciência, mostrando os debates, mas tentando ser equilibrado enquanto ao que a maioria aceita como correto.

O Discovery Channel não parece se importar muito com essa visão. O entretenimento, custe o que custar vale mais do que o rigor, o efeito sobrepõe-se à precisão.  Da mesma forma Lawrence Joseph, cujo livro não conhecia antes de assistir o programa, parece brincar com as mesmas estratégias para conseguir maiores vendas.  Será que eles não se precoupam com as centenas de milhares de pessoas que estão angustiadas pela próxima chegada de um Apocalípse?  Pessoas que abandonam suas casas para buscar refúgio em sítios considerados seguros?  Quantos conflitos pessoais e sociais está criando esta histeria sem qualquer base científica?

Os dois astrofísicos do Goddard, são os únicos que não deixaram dúvidas quanto ao seu convencimento de que não haverá Apocalípse, embora a carinha ingênua da Holly afirmando "eu acho que não acontecerá nada em 21 de dezembro de 2012", ou a frase de Alex Young: "não há nada de especial em 2012", foram muito pouco para contrarrestrar uma exposição de uma hora de palavras de efeito junto com grotescas imágens de Holocaustos Universais que, no melhor dos casos apresentam situações  de baixíssima probabilidade.   Enquanto que a participação do John Rennie da Scientific American também me deixou uma sensação agridoce, as vezes parecia estar apoiando as malucas especulações que pretendiam passar por verdades científicas.  Talvez não mediu as palavras e se deixou levar pela excitação que produzem os holofotes.  

Eu vou resumir os cenários apocalípticos descritos no programa.
  1. Alinhamento Galático.  Sobre este tema já escrevi com muito detalhe no meu livro sobre as profecias. Aqui está o link. Sintetizando, não haverá alinhamento nenhum e mesmo que ele viesse a ocorrer, não haverá qualquer jato de energia em nossa direção. (Na versão do Discovery, o problema parece ser o contrário, o Sol eclipsará a energia vital que vem do centro galático...)
  2. Explosão solar ou Ejeção de Massa Coronal provocará um blecaute elétrico geral.  Sobre o tema também me estendi no meu livro (vide aqui). Também não acredito no tamaho do desastre, mesmo porque a atividade solar está muito mais fraca que há dez anos.  E, como diz a Holly Gilbert, "se em 2003 enfretamos todos esses problemas muito bem por que agora não?" Eu vou voltar sobre a questão num próximo blog, porque de fato é a única das especulações que conta com algum um suporte científico
  3. Ejeção de Massa Coronal dispara megaterremoto.  Também já abordamos a questão neste blog: aqui e aqui estão os links. A verdade é que alguns pesquisadores (muito poucos) acham que em periodos de maior atividade solar há um aumento, não muito expressivo da atividade telúrica terrestre.  Em outras palavras, podem acontecer mais terremotos (dois ou três a mais por ano).  Se isto for verdade (coisa que ainda não está comprovada) então já passamos por periodos muito mais perigosos, como na década de 1950 quando a atividade solar foi três a quatro vezes maior que a atual.  Devemos nos preocupar então?  
  4. Deslocamento dos Pôlos. Dos megaterremotos, Lawrence Joseph e o Discovery Channel passam a descrever uma teoria geofísica escrita por Charles Hapgood, um mestre em história medieval, que também prestou serviços na CIA norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial, na época chamada de Office of Strategic Services.  Hapgood escreveu um livro cujo maior mérito parece ser o de ter prólogo de Einstein, depois publicou outros mais.  Na visão deste historiador a Terra poderia passar por cataclismos severos que deslocam o eixo em 30 graus ou mais produzindo uma reorganização dos continentes com graves consequências para a vida.  Ora, pesquisando nos meios científicos não achei referência nenhuma às teorias do Hapgood. Ou seja, ela é uma especulação feita por um historiador em base a interpretação de antigos mapas. Interpretação contestada até pelos próprios historiadores. Vamos voltar sobre a teoria de Hapgood num próximo post porque me lembra à de Immanuel Velikovsky sobre os mundos em colisão. (O Hapgood chegou a afirmar que há evindências de seres humanos junto com dinossauros)
  5. Inversão magnética. Também ja escrevemos bastante sobre esta questão (vide aqui).  O Ian O'Neil faz uma descrição aterradora do que poderia acontecer se o campo magnético desaparecer: o aumento da radiação ultra-violeta provocaria o aumento dos compostos em base a nitrogênio e oxigênio (chamados NOx) na atmosfera que levaria à desaparição do plancton marinho, e com ele à quebra de toda a cadeia alimentar com vastas consequências para a humanidade.  Preciso checar este cenário, mas a verdade é que se toda vez que o campo magnético inverter (e ele já inverteu centenas de vezes no passado) ocorre este colapso não se explica como não há correlação com as extinções em massa de especies. O Lawrence Joseph fala do buraco do campo magnético na região do Atlântico Sul, bem conhecida pelos brasileiros por ficar seu centro perto da ilha de Santa Catarina; e ele ainda assusta falando  de um outro buraco detectado uns anos atrás (embora passageiro).  Ora, a Anomalia existe desde muito tempo atrás (100 anos?) e nossa teconologia já contornou o problema.  Por que deveriamos nos preocupar agora?
  6. Colisão com asteroide.  Essa foi descartada rapidamente. Não existe asteroide grande o suficiente que esteja se aproximando da Terra para colidir em 2012. Disto temos certeza porque existem programas de monitoramento espacial.  Alguma pedrinha poderia até passar despercibida, mas não uma capaz de acabar com a civilização terrestre. 
Para ilustrar o programa, grostestas animações de computador mostravam ininterruptamente a devastação produzida por terremotos, tsunamis, blecautes de energia, invernos prolongados, cometas, etc, enquanto tocava no fundo uma música marcial.  No fim, com a exceção de Lawrence Joseph, de cujo convencimento sobre o Apocalípse depende o futuro de vendas de seu livro, o resto do painel foi cético quanto a possibilidade do fim do mundo.  

Mas o Discovery reservou os segundos finais para a frase de maior efeito, como relatado acima.  Na minha visão o Discovery Channel fez um papelão com este programa, desacreditou-se a si próprio, e mostrou que seu principal, senão único objetivo, é o lucro.